[Data original do texto: 22/03/2016]
Vi o filme "A Bruxa" no cinema, amei, sou amante de
filmes de terror e sim, discordo de quem acha que "A Bruxa" não é filme
de terror. Pra mim é tipo "Babadook", só que tratando de um outro
tempo, um terror vivido pelas mulheres, compartilhado e compreendido por mim
enquanto espectadora. O filme me fez pensar em muitas coisas que estudei na
faculdade (de História). Dividi em tópicos e, ao final de cada, trouxe os
autores e autoras que embasaram a discussão.
Modelo do sexo único
Todo discurso
médico é produzido por uma sociedade, sendo assim, (1) ele só pode ser
analisado segundo os valores e a lógica de seu tempo e lugar e (2) ele também é
uma construção social. Hoje, nós trabalhamos com o conceito dos dois sexos. No
período moderno, o modelo era o do sexo único. Segundo esse modelo, vigente nos
séculos XVI e XVII, o aparelho reprodutor feminino não era diferente em essência
do masculino, mas sim em grau. O órgão da mulher era interno, estando um
estágio abaixo do homem, cujo órgão se desenvolveu completamente, tornando-se
externo. A metáfora para o órgão feminino é, então, a de um pão que não
cozinhou por completo, enquanto o homem sim. Esse discurso reforça uma visão
social de superioridade masculina. O homem está biologicamente num patamar de
perfeição. As características associadas ao homem recebem uma valorização
simbólica positiva.
Leitura: A
discussão é, obviamente, mais aprofundada, feita por LAQUEUR ("Inventando
o sexo"), mas você também pode ler a SCOTT ("Gênero, uma categoria
útil de análise histórica") se quiser uma leitura que distingua sexo e
gênero.
Mulheres como suspeitas e a culpa
Homens foram
perseguidos pela Inquisição, mas a perseguição às mulheres se dava de forma
mais intensa. Antes de pensarmos nas mulheres mortas na fogueira, a gente pode
pensar numa Inquisição e numa visão religiosa que coloca mulheres como
suspeitas. Quando você associa ao imaginário da bruxa elementos como vassouras,
poções, a ideia de curandeira, o que está sendo usado são elementos
corriqueiros na vida das mulheres da época. Além disso, tem-se uma maior parte
de mulheres que não eram queimadas, mas obrigadas a cumprir uma pena,
utilizando um hábito penitencial em público, o que identificava a condenada e
representava uma humilhação que marcava a família e os descendentes. O uso do
hábito podia se dar por meses ou anos.
Pensar o que
acontecia para além da condenação de mulheres à fogueira, não é diminuir o que
ocorria, mas sim entender um contexto que leva mulheres a serem queimadas, um
contexto misógino onde a figura feminina é vista com muita suspeita e onde a
Inquisição tem como forte objetivo o reconhecimento da culpa (que acaba sendo
um sentimento de culpa feminino).
Leitura:
- BETHENCOURT F., "O imaginário da magia".
- A autora M. KING
("A mulher no Renascimento") trata a Inquisição como uma guerra
contra as mulheres.
Desconstrução
de uma visão simplista
É simplista a
visão de que mulheres procuravam a vida religiosa no claustro por buscarem uma
perfeição religiosa. A complexidade é maior. (1) Existem histórias de fugas,
(2) muitas entravam no convento ainda crianças de forma que não tinham outras
experiências ou visões de vida para além daquela do convento, (3) colocar uma
filha para virar freira era um jogo de interesses tal como o casamento
arranjado, (4) algumas mulheres se apropriavam dos esteriótipos negativos
aplicados à elas e os usavam a seu favor, para se fazerem reconhecidas na
Igreja (é o caso de Santa Teresa). Ou seja, acreditar unicamente numa vocação
religiosa dessas mulheres e ainda, numa vontade própria, além de desconsiderar
a complexidade das relações sociais e abraçar um esteriótipo de gênero, coloca
essas mulheres numa posição de passividade o que retira delas o caráter de
também agentes da história.
No período
moderno, o estado considerado perfeito para a mulher era o eclesiástico. A
mulher freira e a mulher casada eram respeitadas na sociedade. Assim, se tornar
freira era mais uma decisão familiar para reconhecimento social do que uma
vocação religiosa que a mulher demonstrasse ou desejasse. Após o Concílio de
Trento, a Igreja passa a exigir que a mulher só entre para os conventos por
vocação religiosa. Para isso, elas assinavam um termo alegando que estavam lá
por vontade própria. Logicamente, isto não impedia que a mulher fosse forçada
pela família a assinar.
Leitura:
- KESSEL,
E. "Virgens e mães entre o céu e a terra".
- LAVEN, M.
"Virgens de Veneza".
- WEBER, A.
"Retórica da feminilidade".
Santas ou
bruxas?
As narrativas
hagiográficas exploram muito essa questão de vocação. Em diferentes narrativas
tem-se elementos semelhantes que descrevem a vida dessas santas, como
experiências de visões ou milagres já na infância (predestinação) e a descrição
do corpo com faces rosadas após a morte (superação da condição humana de
mortal). Fato relevante é que nas narrativas sobre os homens o testemunho de fé
se sobrepõe à questão da castidade, enquanto a santidade de mulheres aparece
associada à sua virgindade.
A narrativa de
vida das santas tinha uma função de servir de estímulo e exemplo para outras
freiras, para que se pautem naquele modo de vida*. As experiências místicas em
vida são semelhantes: as experiências de visões, o martírio ao corpo**. Era
comum que fiéis, inclusive da elite e mesmo da realeza recorressem à Igreja
institucional, mas não obtendo resultados, buscassem pelo serviços de
feitiçaria. O que se vê que caracteriza mulheres com práticas e experiências
semelhantes em santas ou bruxas era a sua classe social; sobretudo mulheres
pobres eram condenadas como bruxas pela Inquisição, enquanto semelhantes
experiências podiam colocar mulheres da elite na categoria de santas.
Características de uma bruxa: mulher e pobre.
*Lembrando que na
época, a maioria dos fiéis era analfabeta e a mulher no claustro lia e
escrevia, o que já a colocava um patamar acima das demais.
**O martírio ao
corpo vinha da vivência de castigos que se aproximavam da Paixão de Cristo
(como os açoites). Autoflagelo, jejuns prolongados, alimentar-se apenas de
alimentos podres, enfim, tudo o que castigava o corpo fazia bem ao espírito. Da
mesma forma, o que favorecia ou agradava ao corpo fazia mal ao espírito. Como
dito, com o corpo maltratado e as experiências relatadas de visões, muitas vezes
a linha tênue que separava a mulher possuída pelo demônio e queimada na
fogueira da santa estava em sua origem social.
Leitura:
-
ALGRANTI, L. "Conventos e recolhimentos".
- KESSEL, E.
"Virgens e mães entre o céu e a terra".
- KING, M. "A
mulher no Renascimento".
- SÁNCHEZ LORA, J.
"Mujeres, conventos y formas de la religiosidad barroca".