15.12.16

a bruxa

[Data original do texto: 22/03/2016]

Vi o filme "A Bruxa" no cinema, amei, sou amante de filmes de terror e sim, discordo de quem acha que "A Bruxa" não é filme de terror. Pra mim é tipo "Babadook", só que tratando de um outro tempo, um terror vivido pelas mulheres, compartilhado e compreendido por mim enquanto espectadora. O filme me fez pensar em muitas coisas que estudei na faculdade (de História). Dividi em tópicos e, ao final de cada, trouxe os autores e autoras que embasaram a discussão.

Modelo do sexo único
Todo discurso médico é produzido por uma sociedade, sendo assim, (1) ele só pode ser analisado segundo os valores e a lógica de seu tempo e lugar e (2) ele também é uma construção social. Hoje, nós trabalhamos com o conceito dos dois sexos. No período moderno, o modelo era o do sexo único. Segundo esse modelo, vigente nos séculos XVI e XVII, o aparelho reprodutor feminino não era diferente em essência do masculino, mas sim em grau. O órgão da mulher era interno, estando um estágio abaixo do homem, cujo órgão se desenvolveu completamente, tornando-se externo. A metáfora para o órgão feminino é, então, a de um pão que não cozinhou por completo, enquanto o homem sim. Esse discurso reforça uma visão social de superioridade masculina. O homem está biologicamente num patamar de perfeição. As características associadas ao homem recebem uma valorização simbólica positiva.

Leitura: A discussão é, obviamente, mais aprofundada, feita por LAQUEUR ("Inventando o sexo"), mas você também pode ler a SCOTT ("Gênero, uma categoria útil de análise histórica") se quiser uma leitura que distingua sexo e gênero.

Mulheres como suspeitas e a culpa
Homens foram perseguidos pela Inquisição, mas a perseguição às mulheres se dava de forma mais intensa. Antes de pensarmos nas mulheres mortas na fogueira, a gente pode pensar numa Inquisição e numa visão religiosa que coloca mulheres como suspeitas. Quando você associa ao imaginário da bruxa elementos como vassouras, poções, a ideia de curandeira, o que está sendo usado são elementos corriqueiros na vida das mulheres da época. Além disso, tem-se uma maior parte de mulheres que não eram queimadas, mas obrigadas a cumprir uma pena, utilizando um hábito penitencial em público, o que identificava a condenada e representava uma humilhação que marcava a família e os descendentes. O uso do hábito podia se dar por meses ou anos.

Pensar o que acontecia para além da condenação de mulheres à fogueira, não é diminuir o que ocorria, mas sim entender um contexto que leva mulheres a serem queimadas, um contexto misógino onde a figura feminina é vista com muita suspeita e onde a Inquisição tem como forte objetivo o reconhecimento da culpa (que acaba sendo um sentimento de culpa feminino).

Leitura: 
- BETHENCOURT F., "O imaginário da magia".
- A autora M. KING ("A mulher no Renascimento") trata a Inquisição como uma guerra contra as mulheres.

Desconstrução de uma visão simplista
É simplista a visão de que mulheres procuravam a vida religiosa no claustro por buscarem uma perfeição religiosa. A complexidade é maior. (1) Existem histórias de fugas, (2) muitas entravam no convento ainda crianças de forma que não tinham outras experiências ou visões de vida para além daquela do convento, (3) colocar uma filha para virar freira era um jogo de interesses tal como o casamento arranjado, (4) algumas mulheres se apropriavam dos esteriótipos negativos aplicados à elas e os usavam a seu favor, para se fazerem reconhecidas na Igreja (é o caso de Santa Teresa). Ou seja, acreditar unicamente numa vocação religiosa dessas mulheres e ainda, numa vontade própria, além de desconsiderar a complexidade das relações sociais e abraçar um esteriótipo de gênero, coloca essas mulheres numa posição de passividade o que retira delas o caráter de também agentes da história.

No período moderno, o estado considerado perfeito para a mulher era o eclesiástico. A mulher freira e a mulher casada eram respeitadas na sociedade. Assim, se tornar freira era mais uma decisão familiar para reconhecimento social do que uma vocação religiosa que a mulher demonstrasse ou desejasse. Após o Concílio de Trento, a Igreja passa a exigir que a mulher só entre para os conventos por vocação religiosa. Para isso, elas assinavam um termo alegando que estavam lá por vontade própria. Logicamente, isto não impedia que a mulher fosse forçada pela família a assinar.

Leitura: 
- KESSEL, E. "Virgens e mães entre o céu e a terra".
- LAVEN, M. "Virgens de Veneza".
- WEBER, A. "Retórica da feminilidade".

Santas ou bruxas?
As narrativas hagiográficas exploram muito essa questão de vocação. Em diferentes narrativas tem-se elementos semelhantes que descrevem a vida dessas santas, como experiências de visões ou milagres já na infância (predestinação) e a descrição do corpo com faces rosadas após a morte (superação da condição humana de mortal). Fato relevante é que nas narrativas sobre os homens o testemunho de fé se sobrepõe à questão da castidade, enquanto a santidade de mulheres aparece associada à sua virgindade.

A narrativa de vida das santas tinha uma função de servir de estímulo e exemplo para outras freiras, para que se pautem naquele modo de vida*. As experiências místicas em vida são semelhantes: as experiências de visões, o martírio ao corpo**. Era comum que fiéis, inclusive da elite e mesmo da realeza recorressem à Igreja institucional, mas não obtendo resultados, buscassem pelo serviços de feitiçaria. O que se vê que caracteriza mulheres com práticas e experiências semelhantes em santas ou bruxas era a sua classe social; sobretudo mulheres pobres eram condenadas como bruxas pela Inquisição, enquanto semelhantes experiências podiam colocar mulheres da elite na categoria de santas. Características de uma bruxa: mulher e pobre.

*Lembrando que na época, a maioria dos fiéis era analfabeta e a mulher no claustro lia e escrevia, o que já a colocava um patamar acima das demais.

**O martírio ao corpo vinha da vivência de castigos que se aproximavam da Paixão de Cristo (como os açoites). Autoflagelo, jejuns prolongados, alimentar-se apenas de alimentos podres, enfim, tudo o que castigava o corpo fazia bem ao espírito. Da mesma forma, o que favorecia ou agradava ao corpo fazia mal ao espírito. Como dito, com o corpo maltratado e as experiências relatadas de visões, muitas vezes a linha tênue que separava a mulher possuída pelo demônio e queimada na fogueira da santa estava em sua origem social.

Leitura: 
- ALGRANTI, L. "Conventos e recolhimentos".
- KESSEL, E. "Virgens e mães entre o céu e a terra".
- KING, M. "A mulher no Renascimento".
- SÁNCHEZ LORA, J. "Mujeres, conventos y formas de la religiosidad barroca".